Conte sua história, Darticléa
Eu a conheci por ocasião das preparações de minha Primeira Comunhão, realizada na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, em Lagarto-SE, em 1984. Minha impressão sobre ela talvez seja a de muitos de minha geração: uma mulher séria, comprometida com a catequese, disciplinadora e aparentemente “bruta”, até nos presentear com um sorriso e risada toda peculiar. Quando criança, chamava minha atenção um sinal proeminente no seu queixo.
Passados os anos, semanalmente, a vejo sentada no mesmo vão que eu no Santuário Nossa Senhora da Piedade, nos fundos, lado direito, última coluna, penúltimos bancos. Lugar cativo de alguém que fez muito por aquele templo, mas também por Lagarto, seja na educação, seja na catequese. Goza hoje de uma serena paz de espírito, aposentada, às voltas com o carinho da filha e netos, na rua coronel Souza Freire, número 120.
Foi exatamente ali, naquela estreita rua que dá acesso à Praça Sílvio Romero, que nasceu Josefa Darticléa Sousa Almeida, no dia 23 de julho de 1944, filha de Raimundo Oliva Almeida e Maria Souza Almeida, que também geraram: José Raimundo Sousa Almeida, Josefa Teresinha Sousa Almeida e Ângela Maria Sousa Almeida. Exceto o pouco tempo em que esteve em Maceió-AL, estudando, sempre viveu naquele mesmo endereço, com uma infância onde aprendeu com a mãe inúmeros valores, sobretudo quando a levava aos domingos para a Missa, deixando a casa toda arrumada.
“Todo dia era arrumada, na verdade. Mas, o domingo era especial. Mudava as colchas de cama, as toalhas de mesa, coisas que ainda faço no tempo de hoje. Mamãe acordava cedo, despertava a gente, deixava o café pronto e levava para a Missa. Quando chegava na igreja, ela não permitia que a gente se sentasse nos bancos, para deixar para as pessoas que vinham de fora. Ficávamos em pé, na última bancada. “A gente mora perto, tem cadeira em casa”, dizia. Foi com ela que aprendemos a louvar a Deus, a amar Jesus Eucarístico e Nossa Senhora” (Darticléa, Lagarto-SE, dia 9 de abril de 2022).
E assim era no cotidiano em casa. Todos os filhos, inclusive seu irmão, faziam as tarefas de casa: varrer, lavar, entre outros. Depois, a brincadeira, a diversão. Nos fundos da casa, que hoje dá para a rua Laudelino Freire, o pai de Darticléa armava um trapézio bem grande para todos brincarem. A mãe, tinha um jeito todo especial de aproveitar aquele momento para catequizar os filhos, sobretudo aos domingos. Só brincava de trapézio quem lhe respondesse a perguntas baseadas nas leituras e no Evangelho daquele dia.
E assim foi a infância da menina Darticléa. Brincava de corrupio, de calçadinho do reino (trocar as pernas no meio fio da calçada), entretenimentos ensinados pela mãe. Tudo, geralmente, em casa. Às vezes na rua, sob o olhar atento de dona Maria, sentada à porta, costume que foi se perdendo com o tempo em Lagarto. Embora aqui e ali ainda se possa encontrar, apesar da insegurança: “Eu era a mais danada. Saia correndo de uma esquina a outra, pulando corda, às vezes com meus irmãos, com as crianças da vizinhança, e às vezes sozinha” (Darticléa, Lagarto-SE, dia 9 de abril de 2022).
Sua mãe era dona de casa, mas também bordava. Seu pai teve várias profissões. Inicialmente, trabalhava como fateiro (que trata e vende vísceras de gado), depois vaqueiro para o senhor Belinho e para seu Francisco Almeida, depois marchante (negociante de carne bovina). Nessa última atividade, encontrou problemas para seguir em frente em razão da ganância dos ricos da época, deixando a função para se virar de outra maneira. Com a ajuda do senhor Belinho, comprou maquinário para fazer requeijão e manteiga, do leite que sobra da venda em sua casa.
“Papai era esforçado, mas não tinha muita firmeza com os negócios. Graças a mamãe e a vovô Pedrinho, a gente conseguia seguir em frente. Ele nos aconselhava e nos apoiava, dando orientações, inclusive, a como lidar com a clientela e com a concorrência. Ele vinha aqui em casa e dava as orientações, do tipo: feche a gaveta direito. Tanto a papai, quanto a mamãe. A gente estava presente e via o cuidado dele”. (Darticléa, Lagarto-SE, dia 9 de abril de 2022).
Como se vê, não foi uma vida abastada, mas também não foi pobre. À família não faltava o necessário para ter uma existência descente. Quando não tinha Missa no domingo, normalmente, o pai de Darticléa fazia questão de preparar uma maniçoba ou uma feijoada no sábado, para irem comer na beira de rio no dia seguinte. Ela guarda essa memória até hoje com saudosismo e alegria.
Mesmo quando tinha Missa isso acontecia com alguma frequência. Terminada a celebração, papai descia a rua chamando a vizinhança todinha para irmos pra lá: “bora, chega, vamos”. Já estavam aqui as carroças de boi (onde iam as panelas) e as carroças de burro (onde iam as crianças) e nos cavalos ia o pessoal, com adultos e até algumas outras crianças. A gente ia para o Pé da Serra do Qui ou então no Quebra. Lá, passava a manhã toda brincando, jogando bola, caindo no rio. Mamãe não sabia nadar, mas ficava aperreando a gente, jogando-nos na água. Terezinha morria de medo e corria, pois, achava que iria se afogar. Dizia ela: “se eu quiser tomar banho, faço em casa”. (Darticléa, Lagarto-SE, dia 9 de abril de 2022).
Darticléa estudou no Colégio Nossa Senhora da Piedade, numa das cinco primeiras turmas da instituição, fundada em 1947. Sua turma teve experiência com o teatro (dramatizações, como se dizia à época). Ela me disse que não conseguia participar porque era gordinha e não tinha roupa que lhe servisse: “Na verdade, eu era desengonçada mesmo; não dava para fazer apresentação e nunca gostei de me apresentar”. Muito tímida e retraída, travava na hora de falar em público, dificuldade que ela superou quando começou a lecionar.
Entre os professores que lhe marcaram no Colégio das Freiras, foi a irmã Clara. Darticléa teve muita dificuldade de aprender, não sabia, por exemplo, escrever a letra “o”. Sua mãe não tinha paciência com ela, pois seus irmãos eram mais desenvoltos. É sempre bom lembrar que era um tempo de castigos físicos e que a psicologia não era comumente usada nesses casos.
“Meu avô Pedrinho tinha paciência comigo. Vinha em casa ou eu ia na casa dele e eu conseguia pegar a lição. Ele me defendia perante mamãe. Mas, diante dela, eu não sabia. Graças a uma colega, filha de dona Lindor Carvalho Vieira, Estela, foi que eu aprendi de verdade, principalmente nas aulas de irmã Clara, que passou a perceber minhas limitações. Então, pediu para Estela colar em mim: “irmã, ela já sabe a lição”. E a irmã respondia: “sabe nada, deixe de preguiça; ensine sua colega”. Numa determinada ocasião, chateada com uma aluna inquieta, que ela dizia que iria amarrar na mesa, a professora chegou por traz de mim e de Estela e viu que eu sabia tudo direitinho. Foi minha sorte. Ainda assim, a irmã queria saber por que para colega eu sabia fazer a lição e para ela não. De qualquer forma, foi muito compreensiva, pois sabia que era uma espécie de trauma. Sem a obrigatoriedade de tomar a lição para a sala, enfim conseguia passar de ano e seguir em frente”. (Darticleá, Lagarto-SE, dia 9 de abril de 2022).
Foi no Colégio Nossa Senhora da Piedade que Darticléa fez toda a sua formação, até o antigo Normal. Dali, fez uma prova chamada suficiência e foi estudar em Maceió, ajudava por Raimunda de Anália e Altamira. Era final dos anos 60, início dos anos 70. Sua mãe, que estava adoentada, não queria que ela fosse. Diziam que Darticléa era “atraso de turma” (tinha dificuldade de aprendizagem ou burra num sentido mais pejorativo). Ali, na capital alagoana, ela fez Licenciatura Curta em História, na Universidade Federal de Alagoas, durante seis meses.
“Eu sempre achei bonita a História. Tive boas professoras na área, como dona Lourdes Nascimento, irmã de Leninha. Eu me encantava com as aulas dela. Ela fazia os esquemas no quadro. Ela botava vida no que fazia! E aquilo me fascinou. Então, eu disse: eu vou fazer História. Em Maceió, a gente recebia uma bolsa. O valor eu guardava, eu gastava o mínimo possível, pois eu sabia das necessidades em casa. O gasto maior era para pensão” (Darticleá, Lagarto-SE, dia 9 de abril de 2022).
A professora Darticléa estreou na docência em casa, ensinando a seus primos em banca, para ajudar nas despesas da família. Sua mãe não gostava da ideia. Não somente porque ganhava pouco, mas porque era um profissional mal entendido, era desacreditado, ela dizia que as pessoas exploravam o professor. Ironia do destino: todos os quatro filhos de Raimundo Oliva Almeida e Maria Souza Almeida se tornaram professores. Terezinha também foi secretária e bancária. Raimundinho ajudava no Pedagógico. Ângela, casada com Josecilo da Energisa, foi professora de matemática por muitos anos e também comerciante, dona de pizzaria.
Quando Darticléa retornou de Maceió, tinha um edital do Governo de Sergipe aberto para Auxiliar de Educação. Foi aprovada entre as vinte primeiras colocações, de cerca de quinhentos candidatos, e admitida na rede estadual de ensino, por Contrato de Trabalho, no dia 8 de maio de 1968, começando no então povoado Cidade Nova, num galpão vizinho à Capela de Nossa Senhora Aparecida, em Lagarto, cedido por Artur Reis, onde funcionava a Escola Isolada Menino Jesus. Ali, mesmo não sendo contratada para lecionar, foi professora do ensino infantil.
Dali, foi trabalhar no Colégio Estadual Sílvio Romero, começando no terceiro ano primário. Ela, na sua discrição, desde Maceió, não perdia uma única oportunidade de se aperfeiçoar, fazendo diversos cursos, inclusive o Adicional, em 1977, quando sua mãe faleceu. Além dos três por parte de mãe e pai, Darticléa tinha como irmãos por parte de pai, Carlão (locutor) e Ozita (já falecida), do segundo casamento.
Sobre a perda da mãe, Darticléa disse que sentiu muito. Viveu um luto fechado e não participou da formatura com suas colegas. Além disso, também viveu uma fase de ensimesmamento muito intenso, atendia todo mundo em sua casa, até quem insistia em rezar com ela e para ela, contra a sua vontade, mais reclusa em sua casa e em seu mundo. Foi quando na Missa de Sétimo Dia, padre Danilo tocou em seu coração ao contar do caso de umas crianças que tinham ficado órfãs dos pais e que a mais velha, com dez anos, não queria sair de casa por nada, para cuidar nos mais novos: “Daí eu pensei. Eu com vinte e dois anos, fico aqui desse jeito. Eu tenho que viver. Eu tenho que fazer a minha parte. Prontamente, quando cheguei em casa, tornei a lhe dar vida, saindo daquele luto, abrindo a porta, ligando a televisão. Retomando a minha vida mirando-me no exemplo daquela família” (Darticléa, Lagarto-SE, dia 21 de abril de 2022).
Quando veio o Ginásio no Colégio Estadual Sílvio Romero, ela foi designada a ensinar História, Geografia, Organização Social e Política do Brasil (OSPB), Moral e Cívica e Religião. Naquela instituição, ficou até a sua aposentadoria, em 1992.
Incansável e sempre nessa de superar as dificuldades e de se superar, Darticléa foi para Aracaju, estudar o Curso de Licenciatura em História e Filosofia, pela Universidade Federal de Sergipe. E conciliava toda essa corrida jornada, com o trabalho.
Darticléa lecionou, ainda, na rede particular, a exemplo do Colégio Comercial Laudelino Freire, no Ginásio Nossa Senhora da Salete (ambos, entre os anos 70 e 80) e no Colégio Nossa Senhora da Piedade (de 01 de abril de 1981, em substituição à irmã Cristina, a 19 de julho de 1999). Nesta última instituição, ficou muito conhecida, sobretudo nas aulas de História.
Por onde passou, procurou dinamizar suas aulas, o que causava um certo ciúme entre os colegas mais velhos. Jovem, na casa dos vinte anos, ela usava diversas técnicas, até mesmo para melhorar sua relação com os alunos que a achavam fechada e rígida. Dava aula debaixo da mangueira, sobretudo quando o clima estava muito quente.
Foi na gestão de padre Mario Rino Sivieri, a seu pedido, que Darticléa assumiu a responsabilidade pela coordenação do Ensino Religioso nas escolas de Lagarto. Na Diretoria Regional de Educação – 2, ela fez questão de dizer à professora Selma Siqueira: “Sou professora de História a serviço da religião”. Ela não queria perder a sua identidade professoral naquilo que ela mais gostava de fazer em sala de aula. Assim, passou a ser associada para além de professora de História como uma grande referência na catequese na Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Lagarto e também na educação.
“Durante muito tempo, eu fiquei com a catequese, até as Irmãs Venerini chegarem. Eu dava suporte a dona Maria Teles, que já estava cansada, e a Judite, que depois foi cuidar de outras atividades. Tinha muito serviço na Paróquia. Era um trabalho em conjunto entre nós três e como eu era mais nova, sempre me oferecia a ajudar. Eu não era muito de escrever, minha caligrafia toda uma vida foi meio atrapalhada, ruim de ler, principalmente quando eu estava nervosa. Depois a irmã Lucila assumiu a coordenação da catequese, mas fazendo questão, junto com irmã Bernadete, também, que colaborasse” (Darticléa, Lagarto-SE, dia 21 de abril de 2022).
Em termos de participação em pastorais, é, até a presente data, do Sagrado Coração de Jesus e Filha de Maria (esta última, extinta). Até pouco tempo, era responsável pela pastoral do Batismo. Foi de seu avô paterno o gosto pela fé católica, seu Pedro. Não quis seguir a vida religiosa, mas também não casou. Não que lhe tivesse faltado pretendentes, chegou a ser noiva sem êxito. Isso lhe causou um certo embaraço com o pai, que a proibiu de estudar. O pai criou muito expectativa, era a primeira filha a se casar e com uma pessoa bem-sucedida na sociedade.
“Para amenizar a situação em casa, eu disse que iria ser freira. Mas não era esse meu intento mesmo. Cheguei a fugir para o Colégio Nossa Senhora da Piedade. Eu sai de casa muito mal, me angustiava a ideia de não poder estudar mais. Quem me recebeu foi a irmã Ana Maria, com quem eu não tinha muita simpatia. Nesse interim, monsenhor Jason foi em meu favor e incumbiu a Maria do Carmo de ir falar com papai para demovê-lo da ideia. Mesmo dizendo que eu ser freira para me ver livre. Então, ele me fez um cartãozinho que guardo até hoje num Missal, onde ele dizia que para servir a Deus se faria em qualquer parte, não precisa ser num convento” (Darticléa, Lagarto-SE, dia 21 de abril de 2022).
As coisas se acomodaram em pouco tempo, ela voltou para casa, continuou seus estudos, chegou a ter dois namorados, inclusive em Maceió, e a partir daquele momento não se interessou por mais ninguém. Não casar foi uma opção dela, se dedicando por muito tempo ao trabalho e à catequese. Foi quando Elisandra Nascimento Santana (Sandrinha) entrou na sua vida. A sua mãe, Edileuza, veio trabalhar na casa de Darticléa a pedido de seu pai, ele se preocupava com o destino que a filha poderia ter onde moravam. Não deu certo e foi embora. Depois engravidou e teve a filha num lugar muito paupérrimo. A irmã de Darticléa, Terezinha, junto com a irmã da Anunciação, foi ao local e a trouxe de volta para sua casa, junto com Sandrinha.
“Terezinha foi quem deu meu nome. Elissandra foi inspirado em duas grandes cantoras da época: Elis Regina e Sandra de Sá. Eram as cantoras que estavam no auge nos anos 80. Eu nasci no dia 16 de janeiro de 1982. Elis morreu três dias depois. (Sandrinha, 21 de abril de 2022)”.
Sandrina chegou na casa de Darticléa recém-nascida. A ideia era todos darem suporte na sua criação. Foi Terezinha quem a registrou no cartório, em janeiro de 1982. Foi quando Edileuza engravidou novamente. O apego pela menina já era uma realizada e foi resolvido que dali ela não sairia mais: “Ela chegou aqui num estado muito triste, a gente cuidou e agora queríamos que ela ficasse com a gente para ter uma vida melhor do que a que nós encontramos quando ela nasceu. Assim, resolvemos adotá-la”.
Ser mãe não foi difícil para Darticléa, pois toda uma vida soube lidar com crianças e adolescentes. E com Sandrinha, a sua vida ficou plenamente preenchida. Hoje é avó de Jasmine Rafaela (20 anos), Jefferson Rafael (19) e de Alice Gabriela (7). Segue colaborando com a pastoral do Batismo, mas diminuiu o ritmo, se dedicando mais à família e cuidando da saúde. Sem sombra de dúvidas, realizada como pessoa, como mãe e como avó.
*POR CLAUDEFRANKLIN MONTEIRO